Sou tão bicho quanto homem. Ora, todo homem é um bicho por natureza, e nada é mais certo do que isto. Instintos afloram, rasgam as carnes, perfuram a alma, e entorpecem nosso único diferencial: a racionalidade. O sangue pulsa quente em minhas veias, jorrando pelas artérias, penetrando pelo meu interior.
Sou um animal, tão selvagem quanto as águias das montanhas mais remotas, quanto os cavalos mais bravios, que exibem ostentosamente seus músculos de ser indomável e majestoso que é, quanto os lobos que uivam à noite, e se entorpecem de liberdade a cada nova manhã. Sou bicho, grito de dor, sangro na fertilidade, derramo leite na maternidade. Sou bicho, e exibo com orgulho o bicho que sou. Percorro os mais temidos bosques, não há temor, há apenas selvageria. Todo ser-humano é bicho, que na sua eterna covardia, se camufla na civilização.
Quisera eu, viver para sempre, como nas profundezas do passado, dentre tantos outros bichos como eu, perfurando a escuridão, sem medos, sem receios, sem o disfarce cínico da razão. Quisera eu, correr como ser solto, livre, sentindo meus pêlos de bicho se eriçarem a cada rajada de vento, as árvores se remexendo e dançando no ritmo da eternidade, as águas percorrendo o caminho até seu leito, a chuva inundando meus cabelos de bicho, meus olhos selvagens, matando a sede, dando-me vida. Quisera eu ser como antes, conhecer o estado mais puro de ser-humano, de ser bicho, de ser indomável, de ser livre. Quisera eu gritar, uivo animalesco, libertar-me das grades de disfarce de ser-humano, e poder neste uivar soltar aos quatro ventos o bicho que sou.