Grito


Não quis gritar. O grito seco preso na garganta me arranhava aos poucos. Tentei libertar-me de mim, mas estava presa ao meu próprio corpo. Tentei libertar-me da vida, mas se o fizesse, estaria cedendo às prisões da própria morte. O vão da existência me consome aos poucos, me queima lentamente, lentas chamas que fazem meu grito entrar em ebulição. As grades em mim sufocam, como a fumaça faz com as pessoas que as aspiram, e eu me aspirava, e eu respirava e arfava continuadamente num ritmo lento, ritmo incessante, ritmo da vida. Sobre mim mesma não sei muita coisa, sei somente que urge este grito, e que ele me arranha aos poucos e corrói minhas entranhas, confusos nós de existência. O mundo segue em sua órbita, enquanto o universo se expande de uma forma monstruosa, a caminho do desconhecido, quiçás a caminho de Deus. E, quem sou em meio a tanto tudo e a tanto nada? Sou um grito, um grito de existência que continua existindo mesmo sem ter pedido para existir. Grito que está morrendo mesmo sem ter pedido para morrer. Sou, e me basta. Vivo entre estes nós de existir e entre a confusão de ser. Tudo está envolto num mistério tão milagroso, que a nós, nos são somente reservados o direito de indagar, pois, as respostas estão no desfazer dos nós que nossas existências carregam na alma. Respiro, e sinto uma energia poderosa em mim. Deve ser o milagre de "ser", num lugar onde apenas as chamas e as águas poderiam existir. Deve ser no mais pungente modo de indagar, onde somente os deuses poderiam ter este direito. Então sou, indago, e, é neste momento que sinto o grito escapando de dentro de mim, transformando-se em vento, que venta, no momento em que eu sinto o nascer de um novo anseio, o crescer de um novo grito.

Ritual Pagão

Seus olhos esbugalhados acendiam a escuridão como um fósforo a iluminar o caminho. Sentia o cheiro e seus instintos gritavam contorcendo seu ser, dando nós em suas entranhas. Uma ânsia profunda. Atirou-se para o lado, e outra ânsia lhe atingiu como uma facada cortando o silêncio sepulcral. Seu estômago se embrulhava e ao mesmo tempo seus poros fumegavam numa sensação quase sombria.

E, de repente, lá estava. Seus braços foram pegos com outros braços. Tentou fugir de si, agarrar-se em suas convicções, mas, não haviam convicções. Outra ânsia, e o peito já arfava continuadamente. Tentou se desvencilhar novamente, e sentiu outra vez os braços a agarrando. Garras unhando-a num ritual satânico. Virou a face, e sentiu uma boca quente em seus olhos, em seu pescoço, em sua boca, sugando-a, extraindo o último fio de resistência que lhe restava.

Num grito mudo caiu ao chão. E logo sentiu em cima de si o peso de um outro ser que a sugava grosseiramente, enquanto suas mãos percorriam os mais estranhos caminhos que ela jamais se atrevera a percorrer. Olhou para o alto e sentiu o olhar dele como um toque profano. Mais que depressa tentou desviar-se, mas ele a agarrou novamente, garras de bicho, e a forçou a encará-lo durante longos momentos.

Tentou se arrastar para longe, mas não conseguiu. Uma força superior a segurava debaixo do corpo daquele que a dominava com garras, braços e dentes. Outro puxão, pêlo com pêlo, e se viu completamente desprovida de proteção. Os dentes a mordiam e as unhas a arranhavam, fazendo-a sangrar mortalmente, gota por gota escorrendo por entre ambos, num ato profano e selvagem.

Tentou pensar, mas não havia consciência, havia apenas instinto, de modo que, logo estavam dançando a mesma dança de seus ancestrais mais primitivos como num antigo ritual pagão. As ânsias cessaram, e a sensação de poros a fumegar aumentou gradativamente, passo por passo, nota por nota até chegarem ao êxtase. Estavam mais próximos daquilo que os cristãos dominavam de céu.

Ela conteve um grito, e ele, bicho que era a feriu gravemente em seu interior. Caídos permaneceram, respirando ofegantes. Fora um ritual de purificação. Ansiavam por mais, porém, a consciência já os atingira de forma atormentadora. Vergonhosamente tentaram-se esconder de si mesmos, tapar as lacunas e limpar o sangue de carne pulsante que insistia em escorrer incessantemente.

Ele não a olhara apenas se levantara vagarosamente num adeus mudo. Ela permanecera caída, enquanto a vergonha fora dando lugar a mais plena sensação de paz que já sentira. Sua alma divagava por entre o suor e o sangue, por entre os ares da existência. Gemeu de contentamento, e então adormeceu nua, pura, com um sorriso pendendo de seus lábios. Havia conhecido a verdadeira evolução: ser bicho, mulher-bicho, unicamente bicho. E, foi assim, sem consciência, que ela soube o quão milagroso era sê-lo.