Toquei tuas feridas, apalpando-as de cá para lá. Vi em teu rosto contorções grosseiras - desvendavam-te a alma. Ouvíamos Joy Division, som baixo da vitrola, do jeito como sempre costumávamos ouvir. Tu te embriagavas, e eu, jogava-me em teus braços, implorando-te. Logo veio-me com esse papo de doideira filosófica. Faltava-te um café e um chapéu à moda antiga. Tua voz e a música embalavam-me tão perigosamente que corri o risco de perder tuas divagações: tão doidas quantos sãs. Eu não podia julgar tua loucura, nem mesmo tua sanidade - e quem é que as pode julgar?
Ficamos em silêncio depois de teus atos, divagos. Não queria olhar-me, estava denso, num mergulho interior, como quem reflete a própria essência, e na procura de algo acaba por descobrir ser uma incógnita. Eu te mirava em pequenos flashes, para guardar alguns souvenirs teus. Você, recluso dentro de tua alma. Pensei no anseio que tinha, por vezes, em te rasgar, minhas unhas fincando-te lentamente, arrancando-te inteiro para mim. Sei que era impossível, mas, cá dentro, o impossível acontecia, e eu, te tinha. Foi em vão, nunca fostes meu, o apelo na garganta calou-se com o tempo, assim como Joy Division na vitrola. O chapéu, que nunca usastes, ainda estampa as visões que tenho de ti.
Fostes com o vento, tão leve a flutuar. Fostes sem um adeus ou palavra que o valha. Fostes a caminho de ti mesmo, e caminhando perdeu-te de mim. A vida tem desses mistérios a existirem dentro de nós pulsando como ela própria, como o Universo, como Deus. Respirei, aspirando o ar que enchia violentamente meus pulmões. Troquei o disco da vitrola e comecei a cantarolar outra canção, não em som baixo, pois não éramos nós - o nó se desfez, e entremeada aos acordes novos, havia somente eu.