Num instante

Eu pintaria você nos meus dedos. Com o sol amarelento secando a tinta seca. O amor não dói. Frases desconexas não nos corroem. Acho que perdi o meio fio e o meio inteiro de mim mesma. Não sei se sou folha ou flor. Amor ou desamor. Cansei das rimas que nada mais falam, que doem e quebram a garganta em partes, como rachaduras imóveis de chão. Cansei dos mesmos cafés a gelar nas xícaras enfeitadas por flores coloridas pintadas à mão. Eu não sou arte, só faço parte. Cuspo meus medos, mas engulo-os, engasgo-os e volto a viver com a mesma intensidade com que havia morrido ali, outra vez, no canto escuro da sala de estar, entre uma e outra dose de rum, ouvindo o mesmo disco de uma música só. Rasguei-me, comendo meu coração que se verteu em flor. Antropófaga de mim mesma, dos meus amores vãos que deixei cair entre o vão da escada, enquanto a obscena senhora vivia ali. Você não me entenderá, nem eu te entenderei, mas a vida é isso: viver é um não-entendimento, uma mordida no coração. Te transformei em nota, em poema, em canto grave num mi menor. Acho que eu ri quando você secou ao sol, num dó maior quase imperceptível. Acho que você se foi. Acho que era poesia demais pra quem queria ser prosa. Assim, num instante repentino, virei palavra e desvirei verso. 

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