Á frente de uma paisagem marinha, grandes ondas debaixo de um celeste azul do céu, surge nosso herói: Bernardo Antunes, mais conhecido como Beni. Homem alto, de barba por fazer, grandes olhos e pés descalços, está a carregar uma bandeira, que o forte vento da maresia faz questão de agitar ao alto de sua cabeça.
Ao seu redor, homens e mulheres, vestindo roupas sugestivas, barbudos, cabeludos, coloridos. Bando de loucos corrompidos, diria a sociedade conservadora se os visse do modo como eu os vi, a carregarem não somente seus trajes, não somente suas bandeiras, mas também suas esperanças, seus desejos e o frescor de suas loucuras no auge da juventude. Carregam dentro de si o anseio de que podem mudar tudo, inclusive o mundo. São revolucionários, revolucionários pacifistas, que neste instante estão virando à esquerda para queimarem seus antigos aparelhos eletrônicos, enquanto no Vietnã soldados guerreiam. Eles queimam, pois quanto mais você tem mais você quer ter, e até conseguir tudo o que almeja você não estará livre.
Os foguetes estão partindo rumo à lua. As donas de casa estão comprando novas máquinas de lavar. Os homens de gravata estão cuidando de seus negócios. Soldados morrem no Vietnã. E os hippies queimam. Eu estou aqui, exatamente no ano de 1967 vendo-os queimar todo o símbolo de uma sociedade capitalista. Ninguém os vê, apenas eu, estou escondida atrás das ondas grandes que insistem em se debater contra as pedras. Beni está lá, e eu bem sei que após dois anos deste ritual que presencio, Beni estará em Woodstock, assistindo Janis Joplin, Grateful Dead e tantos outros artistas, por apenas dezoito dólares e o dinheiro da passagem para Bethel, dinheiro este que conseguiu vendendo seus artesanatos nas proximidades de sua tenda.
Os contra-cultura estão partindo agora. Seus acampamentos localizam-se a aproximadamente dois quilômetros de onde deixaram o fogaréu a céu aberto. "Paz, amor, felicidade" grita Beni, aos quatro ventos. Todos sabem o quanto a ditadura os inibe, afinal, para o sistema, eles são apenas drogados e loucos, que vivem carregando seus instrumentos musicais sobre os ombros, e caminhando com um baseado entre os dedos rumo ao sol. "Eles são hippies e não tomam banho", dizem as famílias de "bem". Beni ri, e eu sei que no auge de sua "loucura" ele consegue compreender o mundo como ninguém mais. Ele vê o que ninguém vê. O consumismo exacerbado iniciado há décadas atrás, que só se agrava com o passar do tempo, uma ganância que todos passaram a aceitar. Um conformismo que atingiria até a juventude. Modo de vida desumano. "É melhor ser bicho do que ser humano, ser bicho é ser livre, ser humano é viver sob uma ditadura capitalista." - dizia Beni, sempre que alguém questionava sobre seus ideais.
Eles cantam e tocam, e agora eu os vejo debaixo de chuva, ostentando sua bandeira hippie. Eu ainda os sigo, estão felizes como nunca. Tomam LSD para se anestesiarem, não suportam toda a merda no que o mundo tem se transformado. Fazem magia, jogam tarô, dançam com o vento. São livres da maneira como podem. Livres para amar e para cantar numa tarde chuvosa como aquela. Beni beija uma garota na boca, e logo estão enroscados sobre a areia fina. No dia seguinte estarão num pequeno centro urbano, tocando e fumando ao ar livre.
"São birutas" - dirão os passantes que os virão sentados no chão, "Birutas e drogados", Beni rirá novamente, pois é idealista e revolucionário, é pacifista, e entende o mundo como ninguém. "Cada um utiliza de sua própria droga pra se anestesiar, vocês consomem produtos, nós tomamos LSD e nos libertamos de vocês."
Com o passar dos anos, Beni adoecerá. Com o passar dos anos a sociedade passará a enfrentar problemas decorridos de nossos próprios atos, desde a violência até o aquecimento global. Anos se passarão. Décadas. Beni está lá agora, e depois de Woodstock ele é chamado de velho louco. Ainda ri, mas agora, ri apenas para esconder toda a mágoa que apossou sua alma. Sua ideologia ainda existe dentro de si. É livre, apenas mentalmente. Está só agora, ninguém mais quer mudar o mundo, nem mesmo os barbudos e cabeludos de antigamente. São capitalistas agora. Usam outras drogas, tomam outras bebidas, esqueceram-se de que um dia foram jovens, de que um dia foram hippies.
Beni está só dentre tantas pessoas que passam por ele num calçadão movimentado de uma metrópole. Ele não mais vive, sobrevive com o pouco dinheiro que consegue através de seu artesanato. Ele sabe que não mais poderá mudar tudo como acreditava. Beni está lá, caído no chão, recebendo as moedas, não para poder ir para Woodstock, mas para sobreviver durante a próxima semana, ou o próximo dia. Ele é mais uma vítima do capitalismo, mas eu sei que não venderá sua alma. Eu temo por sua infeliz morte, mas só a morte traria a liberdade dos velhos tempos, quando em 1967 Beni e sua comunidade queimaram seus aparelhos numa praia deserta. Eu estou disfarçada, não atrás das ondas gigantecas, estou atrás do muro, vendo-o sofrer por ainda ser fiel às suas ideias, enquanto eu as vendi por algum dinheiro na rua de cima, e agora faço parte do sistema.
Mas, ainda tenho esperanças, como tive décadas atrás. Ainda carrego guardado no mais profundo de minha'lma a liberdade, meus desejos e a esperança de que algum jovem seja tão louco e tão são, que tenha a coragem de ansiar mudar tudo, mudar o mundo, assim como Beni ansiou. Pois enquanto houver uma única pessoa com ânsia de revolução, o mundo não estará totalmente perdido.
3 comentários:
Mudar a própria vida já é um passo pra mudar toda uma história.
Beijo, Nayara.
Rebeca
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- Amei seu post, principalmente o outro. Valeu pelos parabéns, tá valendo. MUITAS saudades!!
Nossa, muito legal sua narrativa "final dos anos 60", gostei bastante.
Bjs
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