Uma Trinca no Espelho


Ela olhou para seu rosto enquanto estava transpirando. Uma dor aguda invadiu suas têmporas. Deitou a cabeça no travesseiro, aspirou o ar que vinha carregando o perfume do homem deitado ao seu lado. Não pôde resistir. Virou-se. Podia ouvir sua respiração tranquila. Estava a dormir. Passou os dedos que antes se agarravam à fronha do travesseiro, pelos cabelos do rapaz que parecia tão frágil. Seu coração acelerou. A dor aguda em suas têmporas aumentou. Tateou seu rosto no escuro. Estavam tão entregues. Recordou-se da foto de ambos que pendia na parede, e que ela fizera questão de manter, mesmo depois da separação tão dolorosa. Quem era o homem que dormia ao seu lado, afinal? Não pôde responder. Levantou-se. Foi até o lavabo, e deixou que a água escoasse pelo ralo. O espelho ainda estava com trincas profundas, há anos estava assim, ele não fizera questão de outro comprar. Ligou o chuveiro, despiu-se. A água talvez pudesse purificá-la. Rapidamente as memórias voltaram em raios difusos que lhe vinham à mente, como se fossem trazidas pela água que escorria sobre seu corpo. Gastara todas suas moedas apostando num amor falido, um amor que fizera questão de manter vivo dentro de si, juntamente com a flama da esperança, que ainda estava aguda e que causava uma dor insuportável em si mesma. Lembrou-se do homem adormecido em sua cama, o mesmo homem pelo qual se apaixonara tempos atrás, quando ainda eram jovens movediços e espirituosos, quando ainda a rotina não os dominara por completo, fazendo dos dois amantes, dois desconhecidos. Travando inquietações e perturbações, que não possuíam num tempo que para eles era remoto. Sofrera muitos abandonos, mas desta vez ela estava convicta de que ele estaria esperando-a, com palavras doces caindo de seus lábios, e ela então se sentiria feliz novamente, uma felicidade que só ele poderia lhe proporcionar. Desligou o chuveiro. Uma rajada de vento invadiu o pequeno banheiro. A dor que sentira instantes atrás, havia dado lugar a uma sensação estranha, um frio incontrolável. Reprimiu o choro com um soluço sem lágrimas. Enrolou-se na toalha que estava pendurada, e abriu a porta do banheiro. Não haviam mais moedas, não haviam mais alternativas ou esperanças, aquelas eram as últimas. Caminhou lentamente até o quarto. Devido às luzes que estavam apagadas, ela não conseguiu discernir se ele ainda continuava imóvel na cama, se ainda dormia. Acendeu a luz, tocando o interruptor. Só os lençóis amassados. Rapidamente correu por toda a casa. O desespero começou a tomar conta de sua mente. A foto na parede havia sido arrancada. Não haviam mais lembranças. Ele havia partido, e desta vez ela sabia que era para sempre. Não haveriam mais flamas interiores, nem fotos para relembrar. Sentou-se solitária na cama, agora fria. Não impediu que as lágrimas rolassem livremente pela sua face. A dor em suas têmporas voltou mais intensamente, mas nenhuma dor poderia ser comparada àquela que estava sentindo, nenhuma dor poderia ser mais forte que a dor que o amor estava causando em seu interior, em seu âmago, em sua alma. Assim como o espelho, ela também estaria trincada, para sempre.