As bombas caíam, atingiam o chão, destroçavam o asfalto, as moradias, as antigas construções, os rostos espantados, os olhares assombrados, as almas.
De todos aqueles humanos assombrados, que corriam e que se escondiam nos porões, havia uma garotinha. Seus olhos sibilavam, seus cabelos arredios, sua boca pensa num sorriso sincero. Sua figura pendida no meio da destruída rua, contrastava com todo o cenário ao seu redor. Enquanto pendia ali, seu pescoço se voltava para trás, seus bracinhos seguravam uma velha boneca de pano surrado, que a mãe fizera questão de costurar, quando a menina não pudera mais deixar as dependências de sua casa.
Ficou a olhar para o céu, por intermináveis momentos. Os sons se intensificavam, sons de guerra e de destruição. Assim como os sons, os cheiros também se intensificavam. Cheiro de morte, cheiro de vida aguda e estridente, cheiro de pólvora, de terra, de sangue. Ainda sorria. Seus dentes brancos, abertos, como um último fio de esperança para aquelas terras sangrentas e desesperançosas. Usava um vestido de pano, também fabricado por sua mãe, anos antes, pouco depois do início das bombas, dos cristais quebrados, das crianças sendo arrastadas por entre os cacos, por entre a chuva fria, e o céu estrelado.
Um rapaz alto de olhos claros passou pela menina. Carregava uma arma nas mãos, e usava um capacete, que a menina imaginou como sendo um chapéu. O homem se deteve por um instante, fitou a garotinha de vestido; a menina vendo-o sorriu timidamente, seus olhos brilhavam de contentamento, enquanto as bombas continuavam a iluminar o céu. O rapaz que possuía um ferimento profundo no braço esquerdo, se aproximou da pequena, e abaixou-se. Fitou sua arma e o rosto angelical da criança. Abaixou as faces sujas de terra e sangue, e passou levemente as mãos nos cabelos empoeirados da menina.
"Onde está sua mãe?" - perguntou, sua voz não passava de um fiapo rouco, de um suspiro abafado, de uma dor.
A menina balançou a cabeça em negativa. Não sabia onde estava sua mãe, nem onde estavam todos aqueles que ela amava, mas isso não importava agora, não para ela. Eles deviam estar em casa, tomando algum caldo com os ingredientes que seu irmão mais velho encontrava pela cidade, e que cada vez eram mais escassos de encontrar.
O soldado então, sorriu para a garota, um sorriso triste e imaculado, a garota retribuiu, num sorriso que marcaria para sempre sua vida, durante os anos que viriam, até sua morte, quando ele puxaria um gatilho, não nas centenas de soldados alemães que matara, mas em si próprio, encerrando assim com sua vida. O sorriso esperançoso e inocente daquela criança, permaneceria ali para sempre, em sua memória.
Num gesto rápido, o soldado russo, levantou-se e pôs-se a correr, buscando salvar-se dos tiros, das bombas, das atrocidades, dos desesperos. Levou consigo como conforto a imagem da garota, e seus olhos negros e sibilantes. Sem perceber, uma lágrima escorreu de seus olhos, marcando sua face, em meio ao pó que havia em si.
Ainda parada no mesmo lugar em que estava, a criança continuou olhando para cima, enquanto fantasmas assombrosos, sangrando, e gritando, caminhavam, cortando o ar. Uma mulher caiu perto da garota, e vendo-a, num último suspiro, imaginou estar nas dependências imaculadas, na casa divina que imaginava ser o céu. Vendo o sorriso brilhante e a esperança de vida que a menina carregava em si, morreu tranquilamente, com a certeza de que veria seu pequeno, nos próximos instantes.
Um som estridente cortou o local. Homens, mulheres e crianças caíram, todos mortos. A bomba fez uma curva no céu escuro, para depois estourar próximo da garota.
O soldado russo que caminhava lentamente pelas proximidades ao ouvir o som da destruição, retornou, correndo, desesperado. Procurou por toda a parte a garotinha, parada a olhar para o céu, mas não a encontrou. Seus joelhos fraquejaram e ele então ajoelhou-se no chão de cacos, e ao fitar o chão, avistou o vestido colorido da menina. Mais que depressa, o soldado correu, em sua direção, e ao agachar-se perto dela, percebeu que sua alma não estava mais ali, que o vento fizera questão de levar. Ela estava morta, os olhinhos fechados, as mãozinhas ainda quentes segurando a boneca de pano. Estava a dormir com a eternidade. Ele chorou, enquanto seu grito mudo se propagava com o vento. Levantou-se, e carregou o corpo da menina pelos próximos quilômetros, enquanto deixava toda a dor e destruição para trás. Depositou seu corpinho juntamente com sua boneca, perto de uma única árvore, que ostentava-se cinzenta em meio à destruição.
Lentamente ele seguiu seu caminho, imaginando o motivo pelo qual a garotinha sorria docemente em meio à tanta destruição e dor. Ele se questionou durante toda a vida, mas nunca obteve a resposta. O soldado russo, jamais pôde saber que a garotinha dos cabelos empoeirados, do olhar brilhante e do vestido colorido sorria, pois para ela, as luzes destrutivas que cortavam o céu eram fogos de artifício. E para aquela criança, parada na rua de Berlim, em 1945, aquelas bombas seriam para sempre fogos de artifício.
5 comentários:
Isso tá tão The Book Thief, sabia?
Hey, lembrei de você ontem, quando eu terminei de ler 'Cien Años de Soledad', e poxa, Bukowsky é tão realista, e poxa, eu não tô fazendo sentido nenhum, porque eu visitei e puxa, tinha um post de hoje, bonito pra caralho, e muito mágico isso...
você é foda ;D
Obrigada pelo apoio. Já pensou em fazer história? Muito incrível, curti muito o post. Cda dia melhor. Bjoooo
ooi, obg por passar la no meu blog ^^
um maraavihoso domingo pra ti.
beisers <333
nossa, que triste, gostei da sua história...
bjs
Teu post me lembrou dois filmes passados na guerra, todos bons: "O império do sol" e um outro, italiano, do Roberto Benigni, o título me fugiu agora, mas é aquele em que o pai tenta distrair o filho num campo de concentração, como se tudo fosse uma brincadeira. Bom, se eu lembrar o nome, eu volto, OK?
Bjoo!!!
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