A Partida

Ele estava parado à soleira da porta, os olhos fixos num ponto qualquer do infinito. Recusava-se a enfrentar o silêncio que havia tomado aquela madrugada etérea e dolorosa. Apenas um único som se atrevia a cortar penosamente o mudo sepulcral no qual tudo estava envolto, um som contido e gritante, um som de choro. Choro que derramava sangue fresco, cintilante, vermelho escarlate.


“Ela está partindo”, ele repetia mentalmente para si mesmo. “Ela está partindo”. As janelas abertas, as cortinas se agitando no ar. O quarto estava imerso em uma escuridão plena, contudo, ele ainda podia vê-la. Os cabelos despenteados, caindo-lhes na testa, as lágrimas pingando incessantemente no assoalho. As roupas sendo cuidadosamente arrumadas numa mala aberta em cima da cama amarrotada. Ele tentou esboçar uma palavra, tentou esboçar um grito mudo, um choro, mas não pôde. A dor atingia-lhe as entranhas em sua forma mais cruel e violenta. “Ela está partindo”, conseguiu sussurrar depois de minutos em meio ao breu.


Nas paredes, cópias de quadros de Renoir, Monet e Rouart. Todos que ela fizera questão de adquirir. Era fã do Impressionismo. E agora, estava indo embora, e levando todas as lembranças e quadros dentro de sua mala.


Ao terminar a árdua tarefa da despedida, ela olhou e fixou os olhos nele, que fora seu amante em tantas noites obscuras e silenciosas como aquela. Ele que fora seu amado, seu erro e seu acerto, sua absolvição e seu pecado. Com dificuldade, ela encontrou no fundo de seus olhos, obscurecidos, a angústia do adeus, e por um único instante se arrependeu de deixa-lo. Viu um misto de paixão e perda, tão grandes, que teve medo de viver sem ele. Ela podia ver a si mesma no interior daquelas íris tão escuras.

Num ato rápido, ela pegou sua mala, e parou perante a soleira da porta. Assim como ele, não havia palavras que podiam expressar todo o turbilhão de sentimentos pelo qual estavam passando naquele momento. Sussurrou apenas um adeus, meio envergonhado, meio calado e rouco. Ele tentou retribuir, mas uma lágrima escorreu de seus olhos, brilhando em meio à escuridão. Queria senti-la pela última vez, e recolhendo todas as forças que lhe restavam, tomou uma de suas mãos, e colocou-a em sua face. Ela sentiu sua barba por fazer, que tantas vezes roçara seu corpo nu. Ela sentiu a textura de sua pele, e seus olhos se escureçam de paixão.


Se enlaçaram num beijo profundo, profano. Ambos inquietantes, desejosos, apaixonados, levados por uma dor e um amor maior que eles mesmos. A mala foi deixada de lado, assim como os medos e todos os receios. O amor falava mais alto que tudo, mais alto que ambos, mais alto que a própria razão. Fizeram amor, paixão e dor. Fizeram paz e ódio. Deitados naquele assoalho empoeirado, eles sucumbiram à entrega total, à irracionalidade, à selvageria dos instintos mais primitivos que habitava o âmago mais profundo de ambos.


Ele sabia. Ela sabia. Ambos sabiam o que deveria ser feito, mas não se importavam. Estavam ali, naquele instante, e desejavam retirar dele sua seiva suculenta. Desejavam morder a carne crua e exposta, desejavam penetrar um ao outro, não somente nos corpos, mas também nas almas.


Após longas horas, ela dormiu exausta, desmaiada nos braços do homem que acabara de amar. Ele durante algum tempo ficou acordado, observando-a, sorvendo sua beleza em pequenos goles. Antes de também adormecer, olhou pela janela, e viu a imensidão negra do céu. Havia milhões de estrelas, ele sabia, e havia milhões de amores em si, mas nenhum que fosse comparado àquele que sentia pela mulher que dormia em seus braços. Neste átomo de segundo, ela acordou por um e fitando-o, sorriu. Ele então viu vida em seus olhos, e tantas coisas tão inexplicáveis, que por um instante julgou ser amor. No instante seguinte, adormeceram.


Os primeiros raios de luz invadiram o quarto. As janelas permaneciam abertas, enquanto o vento continuava a balançar as cortinas. Logo, ele acordou, e ao olhar para seus braços á procura dela, se deparou com um vazio, não somente ali, mas em seu coração. Então, ele pôde constatar aquilo que sempre soubera: ela havia partido.

3 comentários:

~*Rebeca*~ disse...

É horrível quando a ficha cai... o coração desmorona quando o que sentimos vai embora.

Beijo, Nayara linda.

Rebeca

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Bill Falcão disse...

As perdas são sempre dolorosas!
Bjoo!!

Rafael Sperling disse...

Ficou bem bonito o texto! Coitado, perdeu a mulé... hahaha
Bjs